A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF), alertou que a lei que cria o Programa Escola Cívico-Militar, em São Paulo, é inconstitucional. Para o procurador Nicolao Dino, que encaminhou a representação ao procurador-geral da República, a lei traz "sérias violações" à Constituição, como a extrapolação dos limites de atuação de policiais militares, a interferência na liberdade de pensamento, a ausência de competência legislativa do estado de São Paulo para tratar desse assunto e a falta de respaldo na lei federal de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN).
Agora, cabe à PGR a decisão de acionar ou não o Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a constitucionalidade da lei. Uma ação semelhante já foi feita pelo PSOL, que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pedindo a suspensão da legislação. Na última sexta (7), o ministro Gilmar Mendes deu o prazo de dez dias para o governo de São Paulo prestar esclarecimentos sobre o programa.
A Lei Complementar Estadual 1.398/2024 foi sancionada pelo governador Tarcísio de Freitas no dia 27 de abril, depois de uma aprovação marcada por protestos e confusão na Assembleia Legislativa. Durante a votação, estudantes foram agredidos por policiais nos corredores da Alesp. O projeto de lei foi apresentado pela gestão Tarcísio como resposta à decisão do presidente Lula de encerrar o programa federal de escolas cívico-militares proposto por Jair Bolsonaro.
Mas, segundo a PFDC, o programa, que prevê implementar escolas cívico-militares nas redes estadual e municipais, fere o modelo de educação nacional previsto na Constituição Federal, além de violar outros dispositivos constitucionais.
"Ao revés, incorre em sérias violações ao Texto Constitucional, seja pela presença de vícios de ordem formal - exigência de lei federal para tratar da matéria e ausência de competência legislativa concorrente do Estado de São Paulo para tanto - seja pelos vícios materiais de que padece seu conteúdo - extrapolação das atribuições constitucionais da força militar estadual (CF, art. 144, §5º) e afronta aos princípios constitucionais da liberdade de pensamento (CF, art. 5º, inciso IX, c/c art. 206, incisos II e III); da valorização do profissional da educação", diz trecho da representação
Nicolao Dino, irmão do ministro do STF Flavio Dino, e que assumiu a titularidade da PFDC no final de maio, destacou o artigo 22 da Constituição, que diz que “compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional”
— A Constituição Federal não permite aos estados estabelecerem modelo de educação diverso daquele definido pela LDBEN. Não está no escopo da competência legislativa concorrente dos entes federados a criação de um programa híbrido alternativo, como esse cívico-militar de São Paulo — afirmou Dino.
Além da falta de previsão legal para que o estado de São Paulo interfira em atribuições exclusivas da União, a representação aponta que, de acordo com a Constituição, a atividade policial se restringe ao policiamento ostensivo e à preservação da ordem pública. Assim, ao entregar a gestão de escolas a policiais, haveria desvio de função da força militar estadual, segundo a Procuradoria.
O programa prevê dois núcleos, um civil e outro militar composto por militares estaduais da reserva, para gerir as escolas. Ao prever a seleção de militares da reserva para o exercício de atividades pedagógicas sem aprovação em concurso público ou formação específica, a lei afronta o princípio de valorização dos profissionais de educação, segundo Dino, que ainda destacou, na representação, as violações constitucionais da liberdade de pensamento e da gestão democrática das escolas, o que "possibilita a pluralidade de ideias e concepções pedagógicas".
O procurador complementou que não existem estudos ou evidências científicas que atestem a melhora do ensino no modelo cívico-militar
— É necessário levar em conta, ainda, a ausência de razoabilidade na presença de força militar estadual na escola com vistas à contenção da criminalidade e ao aumento do controle social em áreas periféricas, considerando a existência de meios próprios, inerentes às atividades de segurança e policiamento, que não se confundem com a militarização dos processos pedagógicos para a promoção e garantia da segurança pública — concluiu.
Procurada, a Secretaria de Educação de São Paulo afirmou que o Programa Escola Cívico-Militar "foi elaborado a partir de proposições de grupos de trabalho e estudos técnicos conjuntos das Secretarias de Estado da Educação e da Segurança Pública. Para a elaboração do modelo foram seguidos os princípios da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e dos Planos Nacional e Estadual de Educação".
"A Secretaria da Educação reforça que o modelo não será imposto e uma consulta pública definirá a implantação de toda escola Cívico-Militar a ser estabelecida no estado de São Paulo", informou.