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O pudim de leite condensado das Forças Armadas



O artigo de hoje é desmancha prazeres. Ele desmente a informação de que Jair Bolsonaro gastou 15,5 milhões de reais com leite condensado em 2020. Era bom demais para ser verdade.

Ao preço camarada de 5,80 reais por unidade, que um bom comprador talvez alcançasse, o gasto divulgado nesta terça-feira representa a aquisição de cerca de 2,7 milhões de latas ou caixinhas de leite condensado em um ano. Seriam 7,4 mil latas para consumo por dia.

A internet explodiu com memes. Surgiu o Leite Moçanaro. Foram feitas montagens com o presidente segurando uma caixa de cloroquina em uma mão e uma lata de leite condensado na outra. E por aí afora.

Com 7,4 mil latas à disposição cotidianamente, Bolsonaro poderia saciar sua conhecida gula por pão com leite condensado no café da manhã, e ainda encher uma banheira de hidromassagem com leite condensado à tarde, para brincar com os líderes do Centrão.

Apesar de ter se curado de uma (primeira?) infecção por Covid-19, o presidente certamente não escaparia do diabetes.

Tampouco escaparia da Justiça. O PDT entrou com um pedido de investigação contra Bolsonaro no STF. Por trás dos gastos absurdos com leite condensado se esconderiam os crimes de peculato (quando um funcionário público embolsa dinheiro do contribuinte) ou, no mínimo,  prevaricação (o presidente teria deixado de cumprir suas obrigações legais ao não impedir um dispêndio exorbitante e, talvez, desonesto).

Para melhorar as coisas, o portal da transparência do governo federal saiu do ar na tarde de ontem, depois que a história veio à tona, e só voltou a funcionar na manhã desta quarta-feira. Suspeito…

O fato é que Bolsonaro não gastou 15,5 milhões de reais com leite condensado em 2020. Uma olhada mais detida nos dados revela que o valor, referente a toda a estrutura do governo federal, está concentrado no Ministério da Defesa. Mais precisamente, 14,4 milhões de reais em leite condensado foram destinados às Forças Armadas no ano passado.

O Brasil tem hoje 334.500 militares na ativa. Refazendo as contas, seriam 8 latas de leite condensado para cada soldado, por ano. Ainda é bastante coisa. Não me parece boa ideia entupir guerreiros com pudim e brigadeiro. Ajuda a explicar a silhueta rechonchuda do general Pazuello. Mas não é um delírio como sete mil latas diárias de doce.

Dizem que a rainha Maria Antonieta, ao ser informada que o povo não tinha pão para comer, espantou-se: “Que comam brioches!” Pouco depois, a Revolução Francesa lhe decepou a cabeça. Desde então, os hábitos alimentares dos governantes têm sido uma medida de quanto eles estão desconectados das necessidades da população. De tempos em tempos, o gasto de dinheiro público com algum item que raramente aparece na mesa do cidadão comum causa escândalo.

É compreensível. Eventualmente, pode mesmo ser um crime. Mas em 99,9% das vezes, essa indignação deriva de um moralismo tolo, que perde de vista o que importa de fato no manejo dos bilhões do orçamento público.

O episódio do leite condensado é um bom ensejo para que se discuta, por exemplo, o orçamento das Forças Armadas para 2021. Como se sabe, na proposta que enviou ao Congresso, e que ainda não foi votada, Bolsonaro só propôs aumento significativo de recursos para um ministério, o da Defesa. O  orçamento da pasta foi de 105 para 110 bilhões de reais, enquanto Saúde e Educação, áreas duramente atingidas pela pandemia, perderam dinheiro.

Há 14 anos, o site Global Firepower publica um ranking comparativo do poderio militar de 138 países.  Entre 2017 e 2021, o Brasil deu um salto de oito posições na lista. Ocupava a posição 17 e  agora ocupa a 9. Está à frente de países como Paquistão (10) e Turquia (11), que têm fronteiras conflagradas, e muito adiante de vizinhos como Venezuela (42) e Argentina (43).

Quando se olha apenas o recorte financeiro, a posição do Brasil cai um pouco, para a posição 13. Somos superados por países como Itália e Arábia Saudita, que ocupam respectivamente as posições 12 e 17 no ranking geral. Nosso dinheiro é gasto majoritariamente com a remuneração do contingente: cerca de 80%. Muito menos vai para a atualização tecnológica.

Bolsonaro disse outro dia que o setor militar brasileiro estava sucateado e que ele está revertendo essa situação. Será mesmo? Será que os gastos são feitos na medida certa?

Dos atentados à democracia aos atentados a saúde pública, há muitos motivos para investigar Bolsonaro. O leite condensado não é um deles, mas serve para iluminar a fatia das Forças Armadas no pudim orçamentário. Eis aí um bom assunto para o Congresso neste começo de ano, se ele não for capturado, como parece que vai ser, pelo governismo.

PS: Num almoço nesta quarta-feira, Bolsonaro se achou no direito de atacar os jornalistas por causa da história do leite condensado. Cercado de puxa-sacos que acham que um xingamento é o auge da “macheza”, ele sugeriu que a imprensa fizesse uma coisa feia com as latas de doce.

Foi orgasmático para quem acha que o antipresidente é um mito.

O vídeo está nas redes. Diante disso, cabe dizer: a hipótese de que a compra milionária de leite condensado poderia esconder alguma maracutaia é absolutamente justificada, diante das suspeitas de que Bolsonaro e família construíram patrimônio fazendo rachadinhas, ou seja, desviando dinheiro público.

Ainda que não o tenha feito desta vez, o “mito” não está acima de se lambuzar com leite condensado. sua história demonstra.

É exatamente nessa frequência rastaquera que ele opera.


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